12 Outubro 2023
"O presidente brasileiro mais uma vez se propõe como elo entre o primeiro mundo e os países em desenvolvimento. A polarização entre o Ocidente e o bloco liderado pela China está dificultando o papel integrador histórico do Brasil".
A opinião é de Bernardo Gutiérrez, jornalista, escritor e pesquisador, em artigo publicado por Ctxt, 07-10-2023.
Em julho de 2005, o governo de Lula enviou uma delegação diplomática a Tel Aviv. Celso Amorim (na época ministro das Relações Exteriores) e Luiz Fernando Furlan (ministro do Desenvolvimento) chegaram a Israel acompanhados de empresários brasileiros com o suposto propósito de fortalecer as relações comerciais entre ambos os países, especialmente nos setores aeronáutico, alimentício e farmacêutico. No entanto, a visita tinha um objetivo político subjacente: reduzir o desconforto do governo israelense após a Primeira Cúpula América do Sul e Países Árabes, que havia ocorrido alguns meses antes no Brasil. A cúpula, além de selar acordos entre o Mercosul e os países do Golfo Pérsico, especialmente em relação à exploração e comércio de petróleo e seus derivados, concluiu com uma declaração conjunta condenando a ocupação israelense da Palestina.
Para facilitar a visita diplomático-comercial, o governo Lula lançou um curto vídeo publicitário no qual uma criança vestindo a camisa da seleção brasileira de futebol percorria um mercado em Israel. Manipulando a bola com habilidade entre as pernas, a criança brasileira começava a brincar com outras duas crianças, uma usando uma kipá (a tradicional touca masculina judaica) e outra com trajes usados por fiéis muçulmanos. O toque mágico da bola, que criava um ambiente fraterno descontraído, sintetizava o papel que o Brasil desejava desempenhar entre esses mundos conflitantes. Abrigar simultaneamente uma importante comunidade judaica e o maior número de descendentes de sírio-libaneses do mundo conferia legitimidade ao Brasil. O "Planeta Lula" começava a se mover.
Durante seus dois primeiros mandatos, Lula conseguiu o feito de manter boas relações com Israel e os países árabes. Ele fortaleceu suas alianças com o primeiro mundo, ao mesmo tempo em que articulava frentes comuns com os países em desenvolvimento. Enquanto garantia investimentos dos Estados Unidos no Brasil, minava os acordos de livre comércio que o referido país tentava firmar com as nações da América Latina. Ao mesmo tempo em que cultivava uma séria relação político-econômica com a União Europeia, Lula promovia outros relacionamentos: ele desempenhou um papel fundamental na criação da União de Nações Sul-Americanas (UNASUR) em 2008, do G-3 (embrião dos BRICS) e do G20. O Brasil se aproximava da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), tornando-se um "parceiro prioritário", sem negligenciar a reunião anual com os países africanos, que ele selou em uma visita à Nigéria em 2005. E, acima de tudo, priorizava o crescente relacionamento comercial com a China. O Brasil marcava gols geopolíticos tão inacreditáveis que ganhava aplausos de seus supostos rivais. No fim do segundo mandato de Lula, um assento no Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU) parecia iminente.
Vinte anos após a entrada de Lula na geopolítica internacional, a diplomacia brasileira está tentando seguir o mesmo roteiro. No entanto, com a guerra na Rússia ao fundo e o bloco geopolítico da China em ascensão, o Brasil está enfrentando dificuldades para manter seu histórico equilíbrio e seu papel mediador.
Em 1º de outubro, Lula assumiu a presidência do Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU). Até o final de outubro, o Brasil usará sua presidência rotativa para tentar restabelecer o diálogo entre Ucrânia e Rússia e evitar o estabelecimento de uma Guerra Fria entre os Estados Unidos e a China. Uma tarefa hercúlea, já que o Conselho está praticamente inoperante. No final de setembro, a profunda crise do órgão ficou evidente quando ministros russos e ucranianos deixavam a sala toda vez que o outro tomava a palavra para falar sobre a guerra. Lula chega ao Conselho com força acumulada. Nos primeiros meses de seu governo, ele ressuscitou as instituições latino-americanas desmanteladas por Jair Bolsonaro, a UNASUL e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC). Além disso, como presidente rotativo do Mercosul, Lula está tentando flexibilizar algumas condições do tratado de livre comércio entre esse bloco e a União Europeia, a fim de concluir um acordo antes do final do ano.
No entanto, se na América Latina, Lula recuperou a liderança, no resto do mundo ele está ofuscado pela China. A recente expansão dos BRICS, que abriu suas portas para alguns regimes não democráticos como a Arábia Saudita ou os Emirados Árabes, representou o triunfo do caminho traçado pela China. O Brasil, inicialmente desconfiado da ampliação do bloco, cedeu em troca de três pontos: o apoio chinês à sua entrada no Conselho de Segurança da ONU, a inclusão da Argentina nos BRICS e o início de transações comerciais em moedas locais em detrimento do dólar. A ex-presidente brasileira Dilma Rousseff presidir o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), o banco dos BRICS, com sede em Xangai, fazia parte do acordo para que o Brasil apoiasse a expansão impulsionada pela China.
A última reunião do G20 realizada em Nova Delhi, com o Brasil presidindo o grupo, terminou com uma grande gafe: Lula afirmou que não impediria Vladimir Putin de comparecer à próxima reunião no Rio de Janeiro. Após saber que havia um mandado de prisão do Tribunal Penal Internacional (TPI) contra Putin, o presidente brasileiro se retratou. Além disso, ele concordou em se encontrar em Nova York com Volodymyr Zelensky, o presidente da Ucrânia, que havia solicitado oficialmente um encontro por meses.
A posição brasileira sobre o conflito na Ucrânia é como um espinho no pé do bloco ocidental e uma das principais âncoras em seu papel internacional. Lula não apenas se recusa a enviar ou vender armas à Ucrânia, mas também afirmou que os Estados Unidos e a Europa Ocidental deveriam parar de incentivar a guerra. Apesar de Lula ter criticado a invasão russa da Ucrânia e ter se oferecido para mediar no conflito, a crescente polarização do mundo em dois blocos torna extremamente difícil a natureza dialogante da diplomacia do Brasil. "A guerra na Ucrânia expõe a incapacidade dos países que fazem parte da ONU de alcançar a paz", afirmou Lula em seu discurso de abertura na 78ª Assembleia Geral das Nações Unidas.
Além da guerra na Ucrânia, há outra razão que justifica as dificuldades de Lula em manter o equilíbrio na geopolítica: o peso da China na economia brasileira.
No final de 2010, antes das eleições que dariam a vitória a Dilma Rousseff, tive a oportunidade de visitar algumas infraestruturas no estado de Pernambuco, terra natal de Lula. Uma das principais realizações de seu governo era a construção da refinaria internacional de petróleo Abreu e Lima, impulsionada em colaboração com Hugo Chávez, então presidente da Venezuela. A refinaria estava cercada por um polo petroquímico e têxtil, um moinho de trigo da multinacional Bunge, destilarias de rum Montilla e instalações industriais.
A cerca de quarenta quilômetros ao sul de Recife, visitei o complexo industrial portuário de Suape. Em seu estaleiro, o Brasil havia concluído a construção do primeiro navio petroleiro de sua história, o suezmax João Cândido. O primeiro de muitos. Entre os contêineres, Felipe Cherpak, um descendente de imigrantes russos que trabalhava na empresa Tecon, resumiu a bem-sucedida fórmula do novo Brasil de Lula, apontando para contêineres: frutas para a Europa, granito para a África, mesas e soja para a China. Antes de Lula, o Brasil exportava 26% de seus produtos para os Estados Unidos. Em 2010, apenas 9,9%. Em 2009, a China se tornou o principal parceiro comercial do Brasil.
Desde que Lula visitou a China pela primeira vez em 2004, o volume total de comércio entre os dois países aumentou dezesseis vezes, atingindo US$ 150 bilhões em 2022. O Brasil exporta principalmente minerais (principalmente ferro), óleos derivados de petróleo, soja e carne para a China. A China exporta válvulas e tubos eletrônicos, equipamentos de telecomunicações, painéis solares e compostos orgânicos para o Brasil.
Além disso, o veto ou desconfiança em relação ao capital chinês nos Estados Unidos e na Europa tem fortalecido a importância estratégica do Brasil. Gigantes chineses dos setores de eletrodomésticos e eletrônicos, como Gree, Midea, Hisense e TCL, estão desembarcando no Brasil. A marca Midea Carrier está construindo uma gigantesca fábrica de geladeiras em Minas Gerais. A plataforma de comércio eletrônico Temu, presente em dezoito países, está prestes a ser lançada no gigante sul-americano. Contudo, o setor que melhor simboliza a mudança na ordem global é o automobilístico. A marca chinesa BYD, o maior fabricante mundial de veículos elétricos, comprou a fábrica da americana Ford no estado da Bahia, que foi fechada em 2021. Enquanto uma das marcas mais emblemáticas dos EUA fabricava veículos movidos a petróleo, a chinesa BYD pretende construir carros, caminhões e ônibus elétricos, além de uma base de processamento de lítio para baterias.
As dificuldades de Lula para se tornar novamente o alquimista global, mais do que geopolíticas, são econômicas. Enquanto o acordo entre o Mercosul e a União Europeia permanece travado e a presença dos Estados Unidos no Brasil continua diminuindo, os investimentos de outros atores globais estão aumentando. É difícil que a nova realidade comercial não influencie, pelo menos levemente, a geopolítica de Lula, o equilibrista de mundos.
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Lula, o equilibrista de mundos. Artigo de Bernardo Gutiérrez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU